2008-04-26

Afonso Cautela: reconhecimento devido

Na primeira metade dos anos 80 tive conhecimento com alguns dos brilhantes escritos do jornalista Afonso Cautela, e desde 1989 que o conheço pessoalmente, e com ele troco, de tempos em tempos, impressões sobre o sentido da vida, as inquietações existenciais e a crise civilizacional e ambiental.
De estilo incisivo, cortante, enérgico, os escritos de Afonso Cautela (Afonso, para os amigos) caracterizam-se pela abrangência, pela independência, pela antecipação e, posso afirmá-lo sem risco de errar, por um profundo amor a tudo o que vive.
Relativamente à abrangência, Afonso Cautela foi um jornalista que abordou uma variedade impressionante de temas. Alguns deles foram, por exemplo, a denúncia do ruído; a poluição no Barreiro; a poluição dos rios; a eucaliptação do Alentejo; o Nuclear; a Medicina sintomatológica; a crítica do consumismo e do desperdício; a sociedade energívora; a agro-química; a crítica sócio-cultural. Inclusive, se perscrutarmos a sua extensa obra, vamos até encontrar reflexões e textos oportunos e penetrantes de crítica da ciência e da técnica, com alcance epistemológico, e até de crítica do próprio jornalismo (curiosamente profissão que exerceu de forma exemplar).
A independência foi outra das características de Afonso Cautela, o que jamais significou neutralidade, mas sim distanciamento de organizações e interesses obscuros, por dedicação a um conhecimento mais profundo da relação da sociedade humana com o seu meio natural.
A antecipação está bem representada pelos textos de dimensão prospectiva e de futurologia que escreveu, ligados também a temas ecológicos. Estar à frente no tempo foi, efectivamente, outra das características da sua obra. E não somente no tema das questões energéticas. Por exemplo, a tripla redução/ reutilização/ reciclagem aparece antecipada de décadas.
A quarta característica que observo em Afonso Cautela é a de um profundo amor a tudo o que vive e da compaixão pela condição humana. Mas esta característica está relativamente oculta nos seus escritos. Só a presença do autor revela abertamente a sua faceta profundamente humana, no sentido mais estritamente positivo, debaixo daqueles seus cabelos brancos, esbranquiçados de tantos combates e causas.
Sobre Afonso Cautela, ao que sei, escreveu-se pouquíssimo. Por exemplo, um ecologista espanhol, Humberto da Cruz, disse certa vez: “Autor particularmente prolífico, grande activista do movimento ecológico português, Afonso Cautela é praticamente desconhecido fora do seu país, apesar do enorme interesse de algumas das suas obras, onde se unem sistematicamente elaboração teórica e propostas de acção”. E eu acrescentaria: apesar de conhecido dentro do seu país, continua (ainda) pouco reconhecido.
Neste ano de 2008, no mínimo dos mínimos lembrar, valorizar e reconhecer a obra de Afonso Cautela é um acto elementar de justiça. É também levantar a voz contra o esquecimento, seja total  (omissão pura e simples) seja parcial, colocando este autor somente na lista dos chamados “pais” ou “percursores” do movimento ecológico, sem pelo menos tomar conhecimento dos aspectos fundamentais da sua vasta obra, e de como a mesma ainda serve de bússola na denúncia da crise ambiental e civilizacional em que (sobre) vivemos. É também reconhecer em vida o valor de uma obra, uma vez que, depois de completar muitas Primaveras, o autor continua felizmente entre nós, produzindo e trilhando os caminhos do conhecimento e da reflexão.

3 comentários:

Maria Afonso Sancho disse...

Só é pena que ele nunca aceite a nossa apreciação.
Também gosto dele e admiro-o muito.
Abraço

Maria Afonso Sancho disse...

Viva o Afonso!

Já o estou a ver a esquivar-se quando falo com ele e o informo do que acho dele.
E um abraço para si, caro Carlos.

Anónimo disse...

Então quando volta a "post'ar"?
abraço